Nos limites da verossimilhança – cenas cotidianas construidas no Photoshop

É verdade que, há um bom tempo, minha rotina de tratamento de imagem se resume a correções de cor/brilho/nitidez, redimensionamentos e aplicações de marca d’água. Mas a fotógrafa Kelli Connell, ao meu ver, estabeleceu um novo parâmetro para que você possa afirmar que seu nível de conhecimento em Photoshop é avançado. Fazendo duas ou mais fotografias diferentes de um mesmo modelo, ela consegue reconstruir cenas que vivenciou, testemunhou ou viu na TV.

Gêmeas? Não!

Em seu site, Kelli afirma que o projeto representa um questionamento autobiográfico sobre sexualidade e o papel dos gêneros que molda o indivíduo no relacionamento.

Mais do que esse auto questionamento sobre polaridades comportamentais intencionado pela fotógrafa, percebo uma oportunidade de observamos a nossa relação com a própria imagem fotográfica e seu caráter de mimese da realidade. Antes de mais nada, é preciso reconhecer a técnica minuciosa e apurada da Kelli em suas colagens, pois é bem difícil, até mesmo para olhos treinados (de fotógrafos e outros profissionais da edição de imagens), identificar em suas imagens os elementos que denunciariam a mesclagem de duas ou mais imagens diferentes. Esta qualidade técnica, por si só, seria terreno fértil o bastante para gerar discussões ferrenhas sobre os limites da manipulação fotográfica e sobre a classificação da fotografia na tríade peirceana da relação do signo com seu objeto (se não entendeu nada da última sentença, veja aqui algumas postagens para compreender um pouco mais sobre semiótica peirceana).

Sério, ainda não consegui enxergar falhas.

Mas vamos complicar as coisas um pouco mais. Muita gente por aí atribui a falta de credibilidade da fotografia na atualidade ao uso indiscriminado da manipulação da imagem, impulsionado pelo desenvolvimento e massificação da tecnologia digital. Há alguns anos, uma boa montagem fotográfica só era possível através do conhecimento técnico avançado de um bom laboratorista, profissional gabaritado para manipular os produtos químicos usados no processo de revelação e cópia ampliada dos filmes fotográficos. Hoje basta ter um celular com câmera digital integrada e acesso à internet (para baixar e instalar uma versão pirata do famoso programa)  para conseguir resultados bem razoáveis em montagens. Dessa facilidade, deriva o mau uso das ferramentas, como o excesso de manipulação e a falta de apuro técnico; uma associação altamente passível de gerar imagens sofríveis. E quando se torna possível comparar resultados diferentes oriundos da mesma ferramenta, derruba-se imediatamente o conceito largamente difundido de que as ferramentas em questão (fotografia digital e programa de edição) são as vilãs da história.

E onde a tia Tereza queria chegar com este parágrafo imenso aí em cima? Ora, na incrível descoberta de que a Kelli digitaliza negativos para recriar suas cenas! Isso mesmo: ela utiliza a fotografia analógica em suas criações. (onde está o seu deus agora, hater?)

Agora, dê mais uma espiadinha nas imagens da Kelli e reflita sobre sua vida.

Gente, é um contra-luz! Ela faz montagem com fotos em contra-luz em plena golden hour!!!

De uma delicadeza sublime.

Vi no My Modern Met. Para conferir mais imagens, clique aqui.

8 comentários sobre “Nos limites da verossimilhança – cenas cotidianas construidas no Photoshop

  1. Orlando Simões disse:

    Ótimo texto… como sempre 😀
    Sobre o papel da fotografia na tríade de Peirce, bom, vale ressaltar que os signos não são estanques em suas classificações e que transitam livremente entre uma e outra dependendo muito de quem os percebe.

    Interpretes com repertório pouco elaborado ou diante de um signo muito complexo não conseguem ir além da ação icônica (semelhança com objeto) ou indicial (indicação do objeto), chegando apenas nos interpretantes de possibilidade (rema) e nos de um juízo particular seu do signo-objeto (dicente).

    Por isso a fotografia transita entre as três categorias da segunda tricotomia, sendo tanto icônica, quanto indicial, quanto simbólica. Lembrando também que a ação dos signos, principalmente na secundidade (segunda tricotomia), pode muito bem ser entendida como um sequencia cronológica de interpretação do signo, partindo-se da semelhança (qualidade, iconicidade) até se atingir os maiores graus de abstração sígnicos (legissignio, simbolo e argumento).

    • Interpretante Imediato disse:

      Sempre um comentário pertinente =)

      Sim, concordo que a fotografia acaba apresentando características das três categorias da relação signo vs. objeto. Mas também sabemos que, geralmente, uma das categorias se sobressai às outras, e é justamente essa a discussão sobre a classificação.

      Peirce e Santaella costumam apontar o aspecto indicial como sendo o predominante da fotografia, pois que ela sempre vai depender da ligação existencial com o seu objeto, por mais abstrata e manipulada que seja a imagem.

      Por outro lado, Arlindo Machado considera a fotografia um signo essencialmente simbólico, na medida em que, a despeito da presença indispensável do objeto no momento decisivo da criação do signo (o disparo do obturador e a captura da imagem no suporte), há uma diversidade de elementos que dependem do controle e do domínio técnico do fotógrafo. Logo, a fotografia seria predominantemente simbólica por tratar-se do resultado de uma construção imagética.

      O exemplo das fotos acima é excelente para tal reflexão, pois os elementos fotografados estiveram forçosamente diante da câmera, mas a cena construida não corresponde totalmente à realidade capturada.

      • Orlando Simões disse:

        Eu discordo dos 3, a fotografia não tem um caráter essencial. Dou um desconto pro Peirce porque naquela época não existia a fotografia arte, subjetiva, ela era uma ferramente do jornalismo e ponto, era isso apenas.
        Do Arlindo eu discordo da colocação dos aspectos operacionas da máquina para caracterizar a foto como signo simbólico. O signo simbólico precisa muito mais de significado abstrato para ser simbólico do que de variantes do tipo operacionais, o que, na verdade, acaba tornado o ponto de vista da foto com índice ainda mais forte, haja vista a ligação física.

        Sou adepto pé no chão da foto como signo em transito nas tres categorias da secundidade, até porque é preciso entender que para atingir a secundidade a foto precisa passar pela primeiridade (quali, sin e legissigno).
        Acho que o equívoco do Arlindo é dar importância demais para a máquina e de menos para a intenção real da foto. O fato da predominancia vale mais para o interprete em si do que para quem diz qual classificação a foto tempo. Por exemplo, eu posso dizer que dada foto é icônica, por ter semelhanças se essa for a lógica que busco, posso dizer que é indicial se for essa a lógica que busco (um retrato para um cartaz de “procura-se” cai bem nesses dois casos), mas também posso dizer que uma foto é simbólica se a carga emotiva que sinto e tenho com ela for a lógica dominante.

        Tudo vai depender o interpretante atingido na relação: rema 9possibiidade de ter entendido), dicente (entendimento pessoal), argumento (entendimento e explicação lógica do processo).

        Não podemos esquecer nunca que isso tudo é uma questão de lógica e o que conta no final é o interpretante atingido, por isso que lá em cima eu menciono o repertório, ponto que acho que é o erro do Arlindo, não é click, a velocidade do obturador, a luz ou qualquer outro aspecto que faz da foto predominantemente simbólica, o que determina essa predominancia é a relação que essa foto é capaz de fazer na mente do interprete, ou seja, um repertório baixo sequer chega ao fato indicial da foto, que dirá o simbólico que abstração pura, daí se apartar das questões tecnicistas propostas pelo Arlindo.

    • Interpretante Imediato disse:

      Bem, já estava me perguntando se o incômodo era bom ou ruim. Porque é válido sair da zona de conforto de vez em quando, não é mesmo? =)

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